sexta-feira, 5 de junho de 2009

Primeira Paisagem

Para meu pai



Um arrepio subiu do lábio superior às têmporas do menino, enquanto o gosto viscoso do sangue lhe salgou a boca. O mundo era ainda maior e mais perigoso do que imaginara. Por onde andaria sua mãe naquela vastidão cinzenta de concreto e asfalto? Em que silêncio morno das ruas agitadas que ele desconhecia? Em que borrão de saia esvoaçada estariam as curvas doces e suaves das pernas da mãe?

Mãe. Primeira paisagem. Raios tépidos de sol aconchegante, leite morno, macio e adocicado. A mãe saíra logo cedo, em um dos momentos de euforia que a levavam às intermináveis compras. Saiu envolta naquela aura mágica e estranha que João conhecia quando percebia a mãe falar mais do que de costume, sorrir mais do que de costume, se perfumar mais do que de costume. O rastro exótico e desconexo da mãe desceu as escadas e apertou o rosto do menino contra seu ventre.

– Meu menino querido, meu caçulinha predileto…

João sorriu, desajeitado, algo incomodado. A mãe não o olhava diretamente nos olhos. As mesmas mãos que o apertavam contra o colo tinham um toque aflito, apressado, num paradoxal movimento de aconchego e abandono ao mesmo tempo. Com o olhar escorrendo pela porta em direção à rua, a mãe fez menção de sair e, imediatamente, João agarrou-se a sua perna.

– Onde você vai? Não vai, não. Fica aqui comigo.

– Meu caçulinha predileto, meu menino querido…

Num movimento ágil ela se desvencilhou do abraço apertado, levantou o menino no ar, rodopiou com ele pela sala, terminou num beijo suave em sua testa, e escapuliu fugaz pelo portão, rumo à histeria da cidade.

João estava sozinho. Ele e a casa escura que exalava aquele estranho e inexplicável perfume. Sentou-se no primeiro degrau da escada, logo ao lado da curva em que ficava uma enorme concha de caramujo. Atraído por suas saliências e depressões, João pousou a mão sobre ela e sentiu sua textura macia. Mesmo as pontas mais finas eram suaves, gastas e arredondadas pelo tempo. Um tom de salmão mais escuro se derramava pelas extremidades, escorrendo mais claro para o meio, quase branco. Na entrada da cavidade, marrom caramelado, cor de doce de banana. Será que a concha trazia o mar dentro dela? Nas mãos de mamãe as conchas sempre têm som de mar. Será que o mar está na concha ou nas mãos de mamãe?

João levantou a concha e tentou levá-la ao ouvido. Mas ela era grande e pesada demais para seus finos braços de cinco anos, não ficava equilibrada a ponto de que seus ouvidos pudessem desvendar o segredo das mãos de sua mãe. Tornou a colocar cuidadosamente a concha em seu canto, temendo um desastre e um terível castigo. Sem a mãe, a penumbra da casa começou a lhe causar certa angústia. Quis sair para o sol e para o ar livre.

Juntou algumas tralhas e foi brincar no quintal da frente. Em suas narinas recendia o perfume exótico da mãe. No ombro e no rosto ardia o comprimir incômodo de seu ventre e de suas coxas. Na testa, estalava de leve seu beijo e os olhos guardavam manchas tênues da sua imagem desfocada. A presença da mãe lhe escapava sutilmente pelos sentidos atordoados. João caminhou até o portão e deu uma espiada furtiva na rua, erguendo-se nas pontas dos pés e apoiando-se de leve sobre a grade. Distraidamente destrancado, o portão abriu-se devagar. João saiu, titubeante, para a calçada.

– Mamãe?...

A resposta foi um sussurro impreciso que se confundia com os sons da cidade:

– Querido…

Correu em direção à rua movimentada, atraído pela voz da mãe misturada ao alvoroço das pessoas e dos automóveis que a abafavam nos seus ouvidos. Mamãe deve estar perdida nesse monte de gente apressada e nesse barulho que não para. Gosto quando mamãe fica em casa, quando faz doce de banana, fecha as cortinas e deixa a sala escurinha para descansar enquanto empurro meu caminhão de papelão pelo tapete e cuido dela. Gosto quando mamãe senta comigo no primeiro degrau da escada, levanta a concha pesada e me mostra o som do mar que mora lá dentro. Ou que mora nas mãos de mamãe…

João também parecia preferir o alheamento da mãe quando se voltava para dentro. Estava acostumado a ele. Sua tristeza vagarosa, perdida, ecoava surda no escuro da casa recolhida, placidamente suspensa, como uma inspiração que não acabasse nunca, como aquele estranho mar que morava não sabia se dentro da concha ou nas mãos da mãe.

João continuou caminhando ligeiro. Às vezes distraía-se nos vãos irregulares dos muros, no fluxo da trilha de minúsculas formiguinhas carregando folhas imensas, nas cores dos portões. Sobressaltava-se com um ruído mais intenso de buzina ou com uma manobra rápida de um automóvel. Mas tinha um objetivo claro: resgatar a mãe. Depois de muito andar sob o sol forte, cruzar como que milagrosamente ruas movimentadas, seguindo a voz da mãe misturada com o zum zum zum da cidade, João sentou-se, exausto.

Recostou-se em um muro morno de sol e deixou pender a cabeça sobre os joelhos. Mamãe sumiu. A voz dela está por todos os lados, sempre de longe, baixinha. Por que será que ela está fugindo de mim? Foi quando João sentiu algo encostar em sua orelha direita e um ar quente entrar em seu ouvido acompanhado por um som abafado. Assustado, virou a cabeça e deu de cara com o focinho preto e úmido de um enorme cachorro marrom.

– Ahn!!!!..... Manhêee!

Levantou-se num sobressalto e pôs-se a correr o mais depressa que podia. Olhava para trás de tempos em tempos para se certificar de que o cachorro não o seguia. Uma pedra solta logo à frente tirou-lhe o apoio do pé e o fez cair pela calçada com a boca em uma lata enferrujada deixada sobre o passeio. Sentiu o arrepio que subiu-lhe às têmporas e o gosto do sangue salgado na boca. Cadê a minha mãe? Por onde será que ela anda?

Um braço adulto, firme e delicado levantou-o do chão. João teve ímpetos de fugir. A senhora Ono olhou-o no rosto, colocou-o carinhosamente sobre o colo e chamou o marido:

– Toshima, não é o filho da Dona Aracy? Como é que será que ele veio sozinho até aqui?

3 comentários:

  1. Maricota
    Você escreve tão bem e todos os seus textos pegam a gente bem no fundo. Você é corajosa e verdadeira e sendo assim você transforma peuqenas coisas do cotidiano em lições de vida para quem lê. Nào sei se são lições mas de qualquer forma são reflexões muito interessantes. Se arte é uma troca de subjetividades você está fazendo arte e muito bem. Revendo sua vida e a nossa também. Beijos
    Sua mãe

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  2. marcia. não pare de escrever , esta do menino joao esta muito boa. diria mesmo excepcional. siga em frente. mande noticias e de um beijo hoje no seu pai por mim. ca fico eu torcendo por esta familia de artitas.

    madrinha.

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  3. uauuuuu, que mergulho! bjs
    malu

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