terça-feira, 31 de março de 2009

Carcinoma Papilífero

O nome bem que é bonito. É sonoro. Tem ritmo. Nunca vi (não tive coragem de encarar as lâminas arroxeadas), mas imagino, poeticamente, exclusivamente levada pela sonoridade, milhares de células em forma de asa de borboleta, agrupadas em pequenos leques que se juntam, formando longas espirais emaranhadas num nó bem apertado. Deve ser por isso que doeu tanto para fazer aquela maldita punção. Deve ser por isso que vivi tanto tempo com essa sensação de nó na garganta. Quando recebi o resultado do exame, me desesperei, entrei em pânico, mal pude acreditar. Eu tinha uma neoplasia cujo nome científico é carcinoma papilífero. Senti nojo de mim mesma. Nojo de carregar na garganta algo que poderia me matar e que nasceu do meu próprio corpo. Senti medo. Senti raiva. Senti culpa. Senti uma tristeza infinita. Senti o peso da solidão da morte.

O único dado positivo (metaforicamente falando, porque todos os dados clínicos eram, felizmente, muito positivos) é que neoplasia significa nova forma. De algum modo, há uma criatividade nisso tudo, a tentativa de ousar uma nova maneira, uma busca de vida nessa morte. Mas que Deus me livre e me proteja de usar minha criatividade assim, desse jeito auto destrutivo, em qualquer outra oportunidade. Amém.

PS: Isso aconteceu em 2006. Mas a elaboração, que agora virou texto, foi acontecer só hoje, mesmo.

quarta-feira, 25 de março de 2009

Pares 2

Continuo colecionando pares (algumas sugestões de amigos, outros pensamentos meus…):
9. Esquerda e Direita;
10. Noite e Dia;
11. Verdade e Mentira;
12. Rico e Pobre;
13. Certo e Errado;
14. Cigarra e Formiga;
15. Bonito e Feio;
16. Em cima e Embaixo;
17. Medo e Coragem;
18. Dentro e Fora;
Nossa vida é o triângulo que criamos ao existirmos nesse entre.

domingo, 22 de março de 2009

Exame de Imagem

Sigo a enfermeira e entro numa sala exígua, de 1,0mx1,5m. Recebo um avental, umas pantufas, algumas instruções e uma ficha para preencher. A enfermeira me diz para aguardar que a técnica já virá me buscar. Tiro a blusa, visto o avental, as pantufas e começo a preencher a ficha. Terminei. Abro a porta e me sento à espera da tal técnica. A sala é toda branca, com uma luz fria, o chão de linóleo branco com umas manchinhas cinzas e marrons. Tudo combina com o avental marrom claro, quase bege. As únicas cores vivas da sala são minha camiseta cor de rosa e minha enorme bolsa amarela penduradas num gancho que sai da parede. O resto tem essa neutra monocromia hospitalar, inclusive eu, que começo a me sentir amalgamada com o lugar. Espero um pouquinho e aparece a técnica. Me leva para outra sala, comprime meus peitos numa máquina enorme, primeiro na vertical, depois na horizontal, tira chapas. Então fala para eu voltar para a salinha que logo virão me chamar para fazer os outros exames. Ótimo. Já vai acabar. Sento-me na cadeira também bege e espero. De vez em quando vejo alguma enfermeira passar, depois uma paciente de avental cinza, uma mãe com duas crianças que choram assustadas, outra paciente, outra enfermeira. Nada da MINHA enfermeira. Vejo um revisteiro no corredor, saio da sala e apanho uma revista sobre piscinas. Folheio. Os projetos são ruins, as fotos são ruins, as reportagens são ruins. Tento outra, sobre churrasqueiras. Mais um fiasco. O tempo está parado. Parece que nada vai acontecer nas próximas horas. Então me abandono aos meus pensamentos. Primeiro percebo que meu maxilar travou, que estou rangendo os dentes acordada. Resolvo pensar no blog, numa receita de comida, mas fico absolutamente tomada pelo pânico. Só me resta rezar. Gasto todo meu estoque de fé (se é que tenho alguma) rezando e pedindo a Deus, ou a quem quer que tenha algum poder de decisão nesta hora, para que os exames estejam todos ótimos. Já tratei os funcionários todos (desde o manobrista, a atendente, todas as enfermeiras, a técnica, com a maior educação). Como se isso pudesse garantir algum sucesso nos exames (além, é claro, de serem regras básicas de convivência). Mas na salinha meus gestos medidos, meu sorriso gentil não conseguem me garantir nenhuma tranquilidade. Rezo com mais força. Penso nas meninas. Daqui a pouco tenho de ir buscá-las na escola. O tempo congelado. Ninguém vem me chamar. Só sinto medo. E rezo. Não dá mais para ficar sentada naquela cadeira olhando a luz fria que desce do forro. O espelho do fundo não amplia o espaço, apenas me diz a verdade: você está horrível, cada dia mais velha, com olheiras e esse tom de pele amarelado. Deve mesmo estar doente. Não resta a menor dúvida. Dou as costas para o espelho, miro o corredor. Talvez caiba a mim descongelar o tempo. Saio da salinha e pergunto a uma enfermeira que está por ali se ela sabe de alguma coisa, pois tenho que sair para buscar minhas filhas na escola daqui a pouco (ainda bem que tenho minhas filhas!). Ela vai investigar, diz que volta já com notícias. De novo eu, o espelho, meus pensamentos. O rosa da minha blusa é bonito, tem um quê de amarelo, parece uma pétala de flor. Já o amarelo da bolsa, apesar de bonito também, com um toque de magenta, como gema de ovo, enfatiza minha doença refletida no espelho e na minha cabeça. Aquela doença que certamente me acomete e da qual vou morrer. Rezo, rezo, rezo. O tempo parou e minhas filhas já devem estar angustiadas a minha espera. Se ninguém aparecer vou acabar berrando, vou chutar a porta e sair pelos corredores gritando que esse laboratório é uma merda. Respiro. Respiro e rezo. E ignoro o espelho. E suas reflexões. Não vou sair berrando por aí, nem vou chutar a porta ou brigar com as enfermeiras. Vou chorar porque não há mais salvação. Estou condenada. Só não me disseram ainda. –Senhora Márcia, vamos para a sala de ultrassom?, fala a MINHA enfermeira sorrindo solícita. Devolvo um sorriso desajeitado, quase triste, de vaca indo para o abatedouro, e saio atrás dela para a sala de ultrassom. Sigo as instruções, deito-me e espero pelo médico. Pelo menos agora a sala é bem maior, a luz é mais quente e não há espelhos. Apenas um monitor de onde verei ao vivo minhas doenças internas sem que o médico me diga NADA. Continuo rezando. Um Pai Nosso, uma Ave Maria, outro Pai Nosso. O médico entra. O exame começa. Vejo as imagens em P&B passando na minha frente, continuo rezando, mas tento ir mais distraída. – Está tudo bem. Não vejo nada com que se preocupar. O médico se levanta, aperta minha mão e sai. Finalmente o tempo descongela. Respiro aliviada. Volto para a salinha exígua, visto minha blusa cor de rosa, pego minha enorme bolsa amarela e me olho no espelho. Já posso refletir. Já posso existir novamente. E há tempo de sobra para pegar as crianças.

quarta-feira, 18 de março de 2009

Quase Razoável

Patricia me deu a ideia e eu resolvi botar no ar. De vez em quando a gente nem acredita que seja capaz de dizer ou fazer certas coisas. Depois percebe que vive fazendo aquilo o tempo todo consigo mesmo. Neste caso o que houve foi um mal entendido, mas a expressão ficou e ainda por cima na minha conta (claro, fui eu que, involuntáriamente, inventei). Quarta-feira à noite. Aula de joalheria. Estávamos lá, a professora, eu (a assistente) e alguns alunos. Eu atendia os “casos” mais simples, que não exigissem um conhecimento tão profundo da técnica, mas procurava caprichar, ser exigente sem ser carrasca e ser compreensiva sem ser condescendente. Eis que uma aluna me pergunta se os primeiros passos do acabamento de sua peça estavam bons. Pego a pequena jóia na mão, olho com bastante cuidado e vejo alguns risquinhos. Nada que impedisse a peça de ir para o polimento (tendo em vista que era uma das primeiras, senão a primeira, que ela executava). Então digo a ela: está quase (perfeito, penso, mas revejo o pensamento e considero toda a questão didática que passava pela minha cabeça) razoável, é o que me sai da boca. Quase… razoável. A aluna era tímida, demorou uma semana para me dar um toque: Márcia, eu sei que vocês gostam de mim, mas você não precisa dar tanta volta para me falar a verdade. Tento me explicar. Inútil. Já virei a chacota da turma. Damos boas risadas, passamos a usar a expressão frequentemente, vira um slogan: Está quase razoável, quase razoável…

segunda-feira, 16 de março de 2009

Finalidades

Recebi, nas últimas semanas, boas notícias de amigos e amigas que acessaram o blog e deram retorno carinhoso via e-mail, telefone ou pessoalmente. Alguns se identificam com o corte de cabelo, outros com o banho de jacaré, com o bolinho de bacalhau no boteco, ou com a dificuldade e a poesia de viver entre os pares. É gratificante ver e sentir a disposição dos amigos comigo. Mas comecei, nesse movimento, a me preocupar, supondo que tais visitas impliquem uma expectativa de bons textos, ótimas ideias, bom humor, sagacidade, que talvez eu não consiga cumprir. Então, para minha própria conta e tranquilidade, resolvi botar no papel a finalidade desse blog.

Quando inaugurei o Maricota•MG, decidi que os textos deveriam ter, mesmo os mais curtos, mesmo os não terminados, mesmo os mal escritos, alguma ideia que extrapolasse a mera descrição de um evento vivido, ouvido ou presenciado, mas que pudessem atrair o leitor não apenas por essa ideia, como pelo contar de algo que lhe fosse próximo. Também pensei que não gostaria de ficar na simples divagação, queria evitar fazer aquela filosofia rasa de botequim (geralmente deliciosa, mas quando regada a um bom copo de cerveja ou de vinho, petiscos, cercada de vozes e sob uma luz suave) e porque para mim as vivências aguçam meus pensamentos muito mais do que partir da pura abstração. Outra condição, personalíssima, foi a de evitar uma obrigação profissional com o blog. Assim, posso postar somente coisas que eu sinta que de fato me digam respeito e ter com ele uma relação bastante prazerosa, embora nem sempre fácil. Apesar do nome divertido, do espírito de cronista e da escrita leve, esse blog é muito pessoal, flutua conforme meu estado de espírito e, por conta disso, nem sempre será tão bem humorado quanto alguns posts passados. Imagino que mesmo um José Saramago, um Guimarães Rosa, ou outro gênio da literatura, sofra com as alterações de humor, com seus dias de maior ou menor inspiração ou vontade. Logo, comigo não haveria de ser diferente (não por conta da genialidade, é claro, apenas da humanidade em comum). Espero que vocês possam compreender minhas inúmeras limitações (no manejo das palavras, na exposição de temas demasiado íntimos) e ainda assim, em minha companhia, sentir-se tocados pelos textos e vivências. Essa é, afinal, a sua/minha finalidade.

quarta-feira, 11 de março de 2009

PS sobre a loucura

Lembrei-me de uns versos do Fernando Pessoa sobre a loucura (poderiam estar lá no final do Corte Radical):

Só a loucura é que é grande!
E só ela é que é feliz!

Lindona!

Tenho sido perguntada acerca do meu novo visual. Quem não viu anda curiosíssimo para ver e dar sua opinião. Eu adorei o novo corte. Tem todas as qualidades que eu queria, é bem moderno, feminino e diferente. Sobre a opinião dos demais, fora minha filha mais nova, que enfaticamente DETESTOU, acho que foi quase unânime, ficou ótimo. De agora em diante vou sair por aí ouvindo a massa gritar: LINDONA! LINDONA! LINDONA!

PS: Assim que for possível, posto uma foto do novo look.

segunda-feira, 9 de março de 2009

Corte Radical

Quarta-feira. Num ataque de “cinco minutos” resolvo cortar o cabelo. O cabeleireiro chama-se - nome altamente sugestivo - Corte Radical. Quero um corte desigual, com pontas, como as minhas pontas soltas que não consigo conectar. Quero um corte charmoso, feminino, mas com personalidade. Digo isso para a moça e ela me pergunta se pode fazer um corte assimétrico. Digo que sim, que fique à vontade para fazer o que quiser no comprimento e na forma, desde que tenha as qualidades que pedi. Ela pega a navalha e começa a cortar… Diz que raramente viu alguém com tanta coragem de deixar o cabeleireiro ficar tão livre no corte. Sinto-me poderosa. Sou mesmo corajosa. Mas as palavras de um amigo para outro amigo na adolescência ficam martelando minha cabeça: “A Márcia só vai deixar de ser louca quando parar de cortar o cabelo desse jeito”. Enquanto devaneio, a navalha se aprofunda nos meus fios, chega perto da nuca, desfia o topo, o lado, desbasta minha franja, bem curta, bem leve. Tremo. Mas não vou desistir agora. Fiquei com o mesmo corte de cabelo anos a fio, esperando minha loucura passar. E ela não passou. Porque não é loucura. Sou apenas eu. Conto para a cabeleireira sobre minha adolescência. Digo que hoje vejo o quanto o comentário era uma besteira (mas não conto a ela que volta e meia ele ainda me persegue). Ela ri e acrescenta: pois é, isso não tem nada a ver, porque quando a gente corta o cabelo e muda o visual, cria um problema real com o qual tem que lidar. Assim, pode parar de viajar naquelas eternas crises existenciais. Também é. Acho que quero expressar quem eu sou (ou como estou) e faço isso tanto quando escolho uma roupa como quando ponho uma música para tocar ou corto o cabelo. Difícil é os outros aceitarem que a gente é assim mesmo e que isso não é loucura, são só as ondas, os pensamentos, as imprescindíveis metamorfoses da vida de cada um. Emprestando as palavras do Raul: Eu prefiro ser essa metamorfose ambulante do que ter aquela velha opinião formada sobre tudo.

sábado, 7 de março de 2009

Leite derramado...

Outro dia fui assistir a Milk, o filme sobre um ativista gay chamado Harvey Milk, dirigido por Gus Van Sant e magistralmente interpretado por Sean Penn. Tenho certeza de que não achei o filme ruim, mas já não sei dizer se ele é bom, muito bom ou apenas razoável. É que o Sean Penn no papel de Milk me lembrou tanto um amigo queridíssimo, morto no ano passado, que eu não consegui mais assistir ao filme como se ele fosse simplesmente um filme. Ficava vendo o Chico lá o tempo todo. As expresões faciais, o jeito de rir, a presença de espírito, um certo deboche, tudo me lembrava o Chico. Saí do filme aos prantos, subi a Rua Augusta soluçando e viajei no metrô (pareceu levar horas) até o Sumaré tentando me esconder dos outros passageiros. O Chico era um desses amigos que fazem a gente se sentir bem no mundo, apesar do mundo. Inteligente sem ser pedante. Sensível sem ser chato. Convicto sem ser doutrinador. Um par. Dividíamos idéias, ideais, trabalhos de faculdade. Ficávamos boas horas conversando em frente à sua casa sempre que eu lhe dava uma carona. E hoje, quando lavo a pia da cozinha, irremediavelmente lembro-me do Chico. Um dos poucos homens que não deixavam aquele restinho de louça sujo dentro da cuba. Tinha que lavar tudo, inclusive a pia, e as coisas gordurosas sempre por último, para não engordurar o resto. Falando assim até parece que ele tinha manias… Nada que todos nós não tenhamos. Ele era meu amigo, ele era adorável. Só isso. Só?...

segunda-feira, 2 de março de 2009

Sapatos

Vou sair hoje à noite. Já escolhi um vestido levinho e arrumado, mas não consigo me decidir quanto ao sapato. Eu e uma amiga vamos estacionar o carro no alto do morro, nas franjas do bairro descoladinho da zona oeste da cidade e de lá vamos andar até um boteco para comer alguma coisa e beber uma cerveja. Fico na dúvida a respeito do sapato que devo usar. Gostaria de ir de salto, me deixa um pouco mais alta, encomprida minhas pernas (um pouco grossas para meu gosto) e me dá aquela confiança de que tanto preciso agora. Mas talvez o melhor seja ir de tênis. Vamos andar, imagino que peregrinar pelos bares até encontrar algum lugar que nos agrade pelo menos um pouquinho e que tenha uma mesa minimamente decente vaga. Quem sabe uma sandália rasteira? É confortável para andar e não vai me deixar os pés quentes. Mas a minha já está muito velha, nem é tão confortável para uma longa caminhada, não sei… A única coisa certa é que vou sair com minha amiga para bater papo no bairro moderninho da cidade. Que boteco será, quantas quadras vamos andar, quem iremos encontrar, que rumo nosso papo terá, o resto todo são as incertezas naturais do programa. Enquanto tento me decidir quanto ao sapato, imagino o atual momento da minha vida: incerto. Tampouco sei o sapato mais adequado para ela. Escolho o tênis. Espero ainda andar muito, confortavelmente, em qualquer terreno. Espero ainda percorrer muitos caminhos interessantes, encontrar aventuras, danças, correrias, passeios. Escolho o tênis! Minha amiga olha o conjunto vestido/tênis. Me acha ousada. Por isso, escolho o tênis.

domingo, 1 de março de 2009

Tonalidades, sabores e sonoridades

É difícil conviver com nossos paradoxos interiores. Talvez por isso eu estivesse com os tais pares, de um post passado, na cabeça. Alguma coisa ali (ou melhor, aqui dentro) me diz que eu gostaria de ser isso ou aquilo, e só, definitivamente. Pender, finalmente, para este ou aquele lado, me transformar num recorte bem delimitado, ser uma cor explícita, uma nota afinadíssima. Mas a vida vai me mostrando que não dá! É pouco. São lugares pequenos e desconfortáveis demais para toda uma existência. É preciso ter coragem para se equilibrar e caminhar no fio tenso dessas polaridades, para viver suas infinitas tonalidades, seus sabores sofisticados, suas sutis sonoridades.