terça-feira, 26 de maio de 2009

O mundo no banheiro

Outra vez o banho...

Finalizando apressadamente o banho da minha filha mais velha (que já estava atrasadíssima para deitar), ouço da própria: já pensou como seria morar no banheiro?

Ops, para tudo! Sem a poesia de uma Madeleine do Proust, mas com toda a poesia que pode ter a minha memória, simplesmente porque é minha e me diz respeito.

Quando eu tinha justamente sete anos, a idade dela, eu vivia me fazendo exatamente a mesma pergunta. Fechava a porta, sentava na privada e começava a imaginar que onde ficava a banheira haveria uma cama embutida que desceria da parede quando eu apertasse um botão. Embaixo da pia ficariam não apenas remédios, desinfetantes, rolos de papel higiênico, como panelas, louças, talheres, toalhas, toda sorte de coisas de cozinha, bem como minhas roupas. A mesa, por sua vez, ficaria (não sei bem como, daí o divertido da imaginação) sob a pia e de lá sairia mediante um puxão. O vaso seria, além da bacia sanitária, a cadeira para se sentar à mesa. Uma coisa meio arquitetônica, meio futurista, um pouco ficção científica, um pouco desenho animado (falei às meninas sobre os Jetsons e elas já se interessaram em assistir). Fui contando tudo isso a elas, em meio a risadas, que rememoração divertida... Mas não pude deixar de concluir (na esperança de que a imaginação delas siga adiante da minha, que elas se tornem, tomara!, pessoas melhores e mais bem resolvidas do que eu) que infelizmente só um banheiro não seria suficiente para ser uma morada inteira. Banheiro tem que ser só banheiro, com seus cheiros e suas intimidades. Elas concordaram (para meu alívio naquele momento*) bem humorada e plenamente com a minha colocação e trataram de incluir o hall dos quartos na tal habitação mínima imaginária.

* E não é que logo agora acabou de me bater uma crise do tipo, pô, na imaginação não vale tudo? Então porque é que eu tinha que me preocupar em melhorar a imaginação das minhas filhas? Bom, foi neurose de mãe... Que mais eu posso dizer? Por outro lado, tenho certeza de que a imaginação das meninas é tão grande que vai se espalhar por tudo quanto é canto, que quem sabe elas ainda possam imaginar que todo o universo é a casa delas. Mas isso prometo deixar por conta das duas.

sábado, 16 de maio de 2009

Eu amo plastilina

Faz dias que tenho tentado fazer uns modelos de anéis em cobre (para depois fundi-los em prata). Primeiro esbocei algumas ideias; recortei pedaços de papel, curvei e dobrei para ter uma visão tridimensional e fiz alguns moldes. Parti então para o metal. Peguei algumas chapas de cobre que eu tinha no meu atelier e comecei a cortar, curvar, dobrar, amassar. O resultado foi uma coisa dura, cheia de pontas, limitada pelo uso das chapas, que funcionavam como uma folha de papel um pouco mais grossa e acima de tudo duríssima para conseguir as curvas que eu queria. Não deixava de ser completamente o que eu queria fazer, mas como a ideia era partir de várias curvas para obter um desenho geométrico mais orgânico, o método, definitivamente, não estava funcionando. Com certeza boa parte dessa limitação é minha, mesmo, eu gosto de ver as coisas tridimensionalmente, só o desenho não é suficiente para me convencer, e adoro trabalhar com as mãos. Só sei que vendo minhas filhas brincar de massinha, veio a idéia: plastilina! Plastilina é aquela massinha das animações. Todo mundo da minha idade (aqueles que tiveram infância) brincou com essa massinha e muitos já assistiram aos incríveis filmes feitos com elas. Hoje em dia, as crianças costumam usar umas mais macias, feitas de farinha, cheias de brilho, cores fosforescentes. Eu comprei logo uma branca. Um monte de plastilina branca. Afinal, como boa arquiteta da FAU (com seus vícios e virtudes), gosto de fazer modelos brancos, para ressaltar a forma, o volume, sem distrair o olho com outras informações. Apesar do cansaço que sentia ontem, não consegui me conter. Abri a massinha, enrolei, amassei, fiz plaquinhas, grandes volumes, tirei pedaços com uma colher, com uma faca, com a mão. Me diverti e consegui chegar a algumas formas bem mais parecidas com as que eu tinha imaginado. Mas o melhor de tudo é que dá até para trabalhar junto com as crianças. Eu amo plastilina.

quinta-feira, 14 de maio de 2009

Yo odio a los que tienen cáncer

“Yo odio a los que tienen cáncer.
Odio a los que luchan contra el cáncer y a las fundaciones amigas.
Odio a los gurúes alternativos, felices de mostrar el camino de la salvación.
Odio a los que interpretan y a los que comprenden y a los que saben lo que tengo que hacer. Odio a los que me lo dicen por mi bien.
A los que derrotan todo tratamiento. A los que reinciden.
A los que se mueren de cáncer, ésos son los peores.”

O texto acima é o início do livro de Patricia Kolesnikov sobre seu câncer de mama. Só quem já passou pela dura experiência sabe o que é sentir tudo isso como uma revolta contra o escancarar da morte, contra a exposição da nossa fragilidade, contra o medo de seguir vivendo sabendo que há um fim, seguir vivendo sem todas as respostas, sabendo que se morrerá sem boa parte delas, que nem o câncer nem seu tratamento nos redimem ou nos respondem a essas questões. Ele é uma coisa terrível, amedrontadora, cuja experiência seria preferível esquecer.

O livro é incrível. Quem recomenda é José Saramago em seu blog. Fala com todas as nuances sobre as reflexões da doente, a dor, o medo e a raiva, suas peripécias pelos médicos, o tratamento impessoal. Conta ainda as reações dos que estão ao lado, desde a postura dos médicos até o carinho da companheira, as visitas inoportunas, a angústia dos pais, seus medos, suas incertezas. Tudo com lirismo, humor e sarcasmo. Está disponível gratuitamente na internet (veja o link na foto da coluna ao lado).

sexta-feira, 8 de maio de 2009

Triste vazio indizível

A Mulher dirige o carro na pista do meio. O sinal amarela e ela diminui. Um cara numa caminhonete sai da pista da esquerda e entra atrás dela. O sinal fica vermelho. Ela vai brecando suave, olhando pelo retrovisor, enquanto a caminhonete se aproxima um pouco mais depressa do que deveria. Solta o pé do freio um pouquinho e deixa o carro deslizar para cima da faixa de pedestres. A caminhonete vem e bate. Nada grave, dá para perceber. O passageiro do carro vizinho diz a ela que nada aconteceu. Ela diz que precisa ir ver, até por consideração, desce do carro e vai olhar o que aconteceu. O motorista da caminhonete (que leva um menino de uns 8, 9 anos) desce também, já xingando.

– Pô, sua vaca, você parou no sinal amarelo! Vaca! Burra!

Ele me chamou de vaca e de burra porque parei no sinal vermelho! Ela respira fundo e responde.

– Não, eu parei no vermelho.

E vai voltando para o carro.

– Você é burra, mesmo, sua vaca, filha da puta, o cara continua.

Ela perde a paciência, se vira e levanta um pouco a voz.

– Para de ser grosso, eu parei no vermelho!

Outra vez vai em direção ao seu carro. O cara pega a caminhonete e se aproxima para atropelar a mulher. É, para passar por cima daquela mulher que ousou parar no sinal vermelho e por isso foi xingada de vaca, de filha da puta e chamada de burra pelo machista que dirige o carro com pressa e acha que pode dar uma passadinha no vermelho porque o sinal acabou de fechar. Ela pula pra dentro do carro e se salva por pouco. De ser atropelada. Porque nessa hora a raiva lhe sobe à cabeça. O sinal abre e ela sai. Ultrapassa o assassino e vai, olhando para o retrovisor e pisando no freio de tempos em tempos. Berra, se desespera, fica indignada, se transforma numa assassina tão louca quanto o cara. Finalmente ele consegue ultrapassar e acelera. Ela sai atrás dele como uma maluca, berrando sozinha e procurando um carro da CET, ou da polícia, ou de quem quer que seja que possa fazê-la parar.

Até que, numa esquina, a caminhonete vira à direita e ela segue em frente. Ofegando, com os olhos vermelhos, o rosto todo molhado. Não há para onde ir, não há o que fazer. Restou apenas o triste vazio indizível.

quinta-feira, 7 de maio de 2009

Intimidade

Sempre que posto alguma coisa, por mais banal que ela possa ser, acabo me enamorando do texto. Leio, releio, leio novamente, torno a ler, não me canso. De vez em quando, gosto. De vez em quando, vejo só defeitos. De vez em quando, percebo a ideia empacada que quase apareceu, mas ficou submersa. Nesse movimento, vou procurando, colecionando e lustrando palavras. Às vezes, leio em voz alta e mudo a ordem da frase por causa da música. Outras vezes, de tanto ler, descubro uma palavra trivial que soa perfeita naquela situação. Mas sabe do que realmente tenho vontade? De escrever como se estivesse conversando com quem lê. Como se fosse um bate papo que contivesse coisas importantíssimas da minha existência. Como se eu revelasse os segredos mais íntimos de um jeito tão coloquial que o leitor nem fosse perceber essa intimidade.