sexta-feira, 17 de abril de 2009

Luara Lua

Esse texto é de ficção. É baseado em alguns fatos reais e em muita imaginação minha. Faz parte daquela tentativa (às vezes sem qualquer êxito) de tentar entender e aceitar as duras realidades da vida. Mudar, pelo menos na ficção, esse mundo tão difícil.

***

Luara Lua era o nome que ela tinha escolhido para si. Luara, de batismo, e Lua, que ela acrescentou mais tarde. Ela gostava da ênfase pleonástica: duas vezes lua. Ou melhor, três, pois mulher já é lua antes mesmo de ter um nome. Luara Lua era seu nome artístico. Passou a assinar assim em quase todos os lugares: no e-mail, no cartão pessoal, nos trabalhos de joalheria. Nome que revelava sutilmente algo do seu estar no mundo. Na verdade, ela se sentia muito mais solar que lunar. Era falante, tinha um sorriso largo, generoso, uns olhos pretos brilhantes. Ultimamente é que tinha descoberto que seu lado lua também era forte e presente. Mais forte e mais presente do que um simples nome. A realidade caíra sobre seus ombros tão violenta que mal conseguia ficar de pé.

Abriu a cortina do quarto e olhou a vista que entrava pela janela. Era uma vista bonita, bem do alto, que pegava os jardins e escorria inclinada e depois suave até o Parque do Ibirapuera. Ela gostava de olhar a cidade do alto. Dava uma sensação de distância e poder ao mesmo tempo. Distância daquela confusão, da energia caótica, e por isso o poder. Poder de olhar de longe e não se sentir engolida pela metrópole, pelo barulho do trânsito, pela correria das pessoas, pela agressividade dos motoristas, pela marcha impessoal dos pedestres. Fazia algumas horas que tinha se registrado no hotel. Precisava ficar sozinha de qualquer maneira. No seu apartamento, não poderia. Ficava em frente à casa do ex-namorado que era um pervertido sexual que tinha esmigalhado todas as suas convicções no amor, na raça humana, na possibilidade de salvação. Ela não era moralista, pelo contrário, mas o que ele fez não lhe era concebível de forma alguma. Era uma questão de ética, não de moral. Não queria encontrá-lo nunca mais, nunca mais. Por causa disso estava morando no apartamento que a mãe mantinha em São Paulo para ficar quando viesse à cidade. Vivia às turras com ela, uma relação para lá de difícil, baseada em culpas e cobranças, em diferenças intransponíveis. A casa da mãe também não era a sua casa. Gostava do pai. Mas ele tinha uma mulher com quem ela não sentia a menor afinidade. De repente, percebeu que não tinha mais casa, não tinha mais lugar. Nem em si mesma conseguia se sentir à vontade.

Por isso foi para o hotel. Já vinha pensando nisso há algum tempo. Mas aquela terça-feira tensa, esquisita, em que a lua virou e o mar ficou de ressaca lhe pareceu perfeita para ficar sozinha, ensimesmada com seus pensamentos, tentando relaxar e descobrir sua morada. Antes do hotel, porém, passou numa farmácia. Comprou um tarja-preta poderoso que deveria dar conta do desassossego que a ocupava. Comprou também, numa adega próxima, um vinho chileno de bom preço e de boa qualidade. Levava um celular sem crédito e o lap-top que ela poderia usar para se comunicar com as amigas caso sentisse vontade. Não sentiu nenhuma. Já tinha falado com algumas pessoas um pouco antes. Não queria pedir socorro. Ninguém poderia socorrê-la naquela viagem solitária, quem sabe sem volta.

Sentou na cama e olhou novamente a vista. Sentia o peso da solidão das coisas que tinha visto e ouvido e que não poderia dividir com ninguém. Mas não chorou. Apenas sentiu que aquele mundo que entrava pela janela não mais poderia ser a sua casa.

Tentou fazer a viagem inversa. Ligou o computador na tomada e entrou no seu orkut. O retrato colorido em que ela sorria, jogou fora. Um amigo fotógrafo tinha feito fotos ótimas umas semanas antes. Fotos em P&B, com ela vestindo preto, bem contrastadas, fortes, dramáticas. Escolheu uma em que estava de costas, leve, como num adeus alegre. No perfil, substituiu as clássicas definições físicas e de gosto musical, cinematográfico e literário pela letra da música do Chico e do Edu Lobo, Cantiga de Acordar. Se identificou particularmente com os versos que diziam: Tudo é uma ilusão/Os que estão aqui/Esses não estão/Em si. E, num pensamento mais ligeiro e leve, se lembrou dos quadrinhos do Laerte na Chiclete com Banana que terminavam assim: Ah! E não se esqueça. O mundo é falso! Achava, mesmo, que o mundo era falso, uma ilusão que depende do nosso olhar mais ou menos condescendente, compreensivo, receptivo. Depende de não estarmos em nós. No orkut também não conseguia encontrar a sua casa. Apenas o seu lado lua aparecia. Desligou o computador e partiu para o vinho.

Na primeira taça já sentiu um suave torpor de embriaguez. Tomava ou não tomava aquele sossega-leão que ela tinha comprado tão barato e sem receita na farmácia lá embaixo? Resolveu não decidir naquele momento. Deixou a caixinha na cabeceira e saboreou o vinho, mas continuou encarando ora a vista, ora a embalagem. Se ela tomasse todos aqueles comprimidos, como seria? Quem sabe encontrasse sua casa. Aproveitaria para apunhalar mortalmente a mãe, tirando dela justamente o que ela havia lhe dado, a própria vida; e o namorado pervertido, a quem não mais poderia se oferecer. Mas o que seria do pai? Da ex-namorada dele que era como uma mãe de verdade para ela? Do irmão? Não importava. Eles iriam ficar com seu corpo. Um troféu efêmero que teriam de enterrar, mais nada. Não deixaria um bilhete, um sinal, apenas a sua dor lunar inexplicável. Eles é que se arranjassem depois com as deles. Cada um sabe cuidar de si. Pois que se cuidem. Ela iria cuidar de si à sua maneira. Entrou na banheira com a taça de vinho na mão e se deixou largar. Sentiu o corpo mais leve, a angústia embriagada. Finalmente conseguiu se sentir um pouco melhor.

De volta à cama, encarou novamente a vista da cidade que já escurecia e abriu o remédio. Quem sabe amanhã eu tome a caixa toda, pensou, e tomou apenas um comprimido. Desfaleceu imediatamente. Dormiu horas a fio. Sem sonho, sem tristeza, sem alegria, sem nenhum sentido. Quando acordou já era dia claro. O sol brilhava contrastando com o céu azulíssimo do outono. Luara Lua via o sol novamente. Jogou a caixa de remédio fora, esmagando bem cada comprimido para que ninguém mais se sentisse tentado. Saiu à rua, se misturou à cidade e ligou de um orelhão para a amiga do curso de joalheria. Criaria coisas belas, colocando nelas todo seu lado lunar para não correr o risco de ser outra vez tragada por ele.

2 comentários:

  1. Minha linda Maricota,

    Só sei que entre a ficção e a realidade a lua (e o sol) estão sempre lá no alto. E no alto, brilham sempre esplendorosos...

    O teu texto é lindo também e já mudou e acrescentou homenagens, luzes e estrelas ao céu de todas nós que temos coragem de tentar dar nossos mergulhos.

    Beijos solares, lunares e amorosos,
    Dékinha

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  2. Uau...uau...de fato a vida chovia diante daqueles olhos negros, um espetáculo violento mas ao mesmo tempo sereno. Mas adeus é um assunto muito sério.
    Gostaria que o tempo se dissolvesse e o final que todos queríamos voltasse a nossa tão imprecisa realidade.
    Beijo grande,
    Tiça Patrícia dia desses eu decido ou continuo pessoas na pessoa.

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